17.6.08

Pintando intuitivamente com vinho tinto

Ontem aconteceu a abertura do ilustraBrasil, onde, apesar da gelada noite paulistana, pude encontrar amigos e também ver muitas pessoas com cara de artista (certamente colegas da SIB, traços sem rosto e vice-versa), e passar os olhos por várias ilustrações legais.

Estou a passear entre música boa, vinhos e canapés idem, quando encontro um amigo ilustrador, que apressou-se em apresentar sua companhia: uma moça bonita, vestida com um sobretudo off-white em grosso tecido trançado que ia até a metade das pernas. Figurino elegantemente paulista para aquela noite fria.

Mal colocado entre os dedos da mão esquerda que seguravam a base da taça de vinho tinto, o meu canapé escapole no momento em que preparo-me para cumprimentar a moça. Em gesto intuitivo, tento agarrá-lo em vôo. Mas a intuição não pensa, simplesmente age: para agarrar o canapé uso a mesma mão que segurava a taça de vinho tinto cheia.

Em uma fração de segundo vejo aquela pincelada de vinho em pleno ar rumo ao inexorável encontro com o canvas que era a bela roupa da moça.

Agora havia um mapa vermelho sobre o lindo e grosso tecido off-white do casaco. Não tenho idéia da cara que fiz, mas deve ter sido ridícula. Todas as caras ridículas do mundo estavam grudadas na minha face.

Seguro a moça confortavelmente pelo braço e peço mil desculpas, milhões, todas as desculpas do mundo. Por dentro sentia-me humilhado pela minha burrice, minúsculo pela absoluta falta de lubrificante social.

"Desculpe, por favor, desculpe..."

Aquilo durou um décimo de segundo e eu pude ver que havia tanto vinho derramado que uma pequena poça já se formava entre os pés da moça.

Sim, agora era a hora dela mesma olhar o casaco e ver a merda que eu havia feito. Agora eu também teria que ver a cara que ela ia fazer, os dardos que seus olhos disparariam, a boca de onde inevitavelmente viria aquele palavrão instintivo. O horror, o horror...

Respirei fundo e preparei-me para o pior. Ela então disse:

- "Agora só falta você assinar, querido!"

A frase veio acompanhada de um sorriso que, estranhamente, me pareceu natural.

A resposta surrealista me desconcertou. Não combinava com o expressionismo abstrato de Pollock que eu acabara de criar em sua roupa. Mas ela continuava a sorrir naturalmente. Será que eu estava louco? Será que ela era louca?

Pedi então que me deixasse conduzi-la até o banheiro para jogar uma água sobre o casaco a tempo de evitar que a mancha de vinho tinto fizesse moradia permanente nas fibras de lã. Precisava muito recolher aquela moça dos olhares piedosos de quem estava ao redor. Afinal, o mico era meu não dela.

Na porta do banheiro ficamos eu e o meu amigo aguardando como pais numa sala de espera da maternidade. Eu pensava na possibilidade de cortar os pulsos com uma faca de plástico - para doer bastante - ou então fugir por uma saída pela esquerda, contanto que lá houvesse um elevador para o inferno.

O meu amigo estava tranquilíssimo (a moça era uma ex-namorada que havia se tornado sua amiga) e pediu que eu ficasse tranquilo também. Como? Impossível, hellooo, eu derramei vinho tinto sobre um casaco de lã com cara de super caro !

Ela estava se demorando um pouco para aparecer. Decidi ir para outro canto. Precisava sair daquela bolha desconfortável chamada "mico". Pedi licença e solicitei ao meu amigo que novamente dissesse à sua companhia que eu sentia muito, muito mesmo.

Encontrei em seguida alguns amigos e suas respectivas, e logo fui contar-lhes a história.

- Gente, preciso contar uma coisa: EU ACABEI DE PAGAR O MAIOR MICO DA MINHA VIDA.

Lá pelo meio do causo, as mulheres ao redor já estavam boquiabertas, os olhos molhados de lágrimas, não sei se por solidariedade à minha dor (!) ou se pelo sufocamento do desejo de rir. Ééé compadre... pimenta no cu dos outros é refresco!

Então ela apareceu. Acompanhada do meu amigo, lá vinha a moça do casaco de lã.

Ele estava imaculadamente limpo! Nem um resquiciozinho rosadinho sequer, nadica de nada daquela oferenda de Baco que eu havia usado para benzê-lo.

-"Mas o que é isso? Que milagre é esse???" (Por dentro eu já estava rezando minhas "salve-rainhas" e "santos anjos" de alívio e júbilo)

Sorrindo aquele mesmo sorriso de antes, a moça disse:

"O casaco tem proteção de teflon, querido!"

10 comentários:

Anônimo disse...

E tem mais... Seu amigo banhou a moça com mais um pouco de vinho por mero descuido e nem ao menos por ciúme. Ela depois da limpeza, avisou:
"Acabou a brincandeira, desfaçam a fila!"

Parabéns pelo seu trabalho,
a moça

Unknown disse...

Chique essa moça, quero meu casaco de teflon também pra usar aqui no Nordeste. :)
Muito bem escrito, adorei. Parabéns talentoso :*

Marco Carillo disse...

O pior que presenciei a tal moça levando mais um banho de vinho tinto de outro distinto ilustrador na sequencia.

abração,

Anônimo disse...

hahahaha...sensaional..."agora só falta assinar,querido. " foi sensacional.
ainda bem que eu não vi isso se não iria rir demais e só iria piorar a situação.

muito bom te encontrar ontem lá, alarcão.
mais um mestre entre os outros mestres que estavam ali. tinha até o benício, rapaiz...o cárcamo. incrivel!

abração!

marceleza

Mauricio disse...

Genial, Alarcão!

Fiquei vermelho diante do monitor pela situação e depois ri muito.

Ótimo ilustrando, ótimo escrevendo.

Maria disse...

rsrsrsrsrs!!! Final sensacional!!!

Julio Carvalho disse...

que história, cara! Daria um curta espetacular.

Laboratório Secreto disse...

corta para:
Banheiro, interna///.

moça limpando o casaco:
– "só falta assinar, querido" Bah! Por quê eu disse isso? Só falta assinar a sua cara, @#$%@%@! Sabe quanto custou essa #@$@%@$# de casaco? Vou lá fora enfiar a $#^##6 nesse $@^@^@%#&!!!

sai do banheiro, furiosa:
– Ué, cadê o #@$@$@? Correu, né?

corta para:
Bistecão, interna.\\

– Ué? Alguém viu o Alarca?
– não...Parece que ele voltou correndo pro Rio...

///

Dona Minúcia disse...

Tua desconfortável saia justa, com vinho tinto no casaco off-white, resultou num texto palatabilíssimo, que nos brindou a todos. Salute!
Bjs

Helena

ds disse...

O artísta gráfico Alarca não teria a menor necessidade de saber escrever tão bem... Se eu fosse Deus teria distribuído melhor os talentos disponíveis. Arreh!!