4.7.10

O que é feio e o que é bonito é só uma questão de costume











Há uns meses atrás assisti ao filme Helvetica. Não vou me alongar em elogios mas apenas deixar um breve comentário antes de seguir adiante: é um filme fundamental.

Em dado momento ao assisti-lo, chamou-me bastante atenção o depoimento de um jovem designer holandês, que disse algo mais ou menos assim: 

"...desde pequenos estamos tão envolvidos pelo universo do bom design, desde a capa do catálogo telefônico, passando pelos meus livros escolares, os selos, os mapas urbanos... a maioria deles criados pelo Wim Crouwel... então crescemos com este olhar. A presença do bom design é algo tão natural em nossas vidas..."

Isso me fez refletir sobre este olhar que construímos e desenvolvemos desde pequenos. Ele acostuma-se com a paisagem, absorve-a de tal forma que faz dela parte de nossa própria identidade.

Da mesma forma, nos acostumamos também ao que é feio, à abundante feiúra que nos cerca. Ela está onipresente desde o nosso primeiro minuto.

Fiz um teste outro dia. Falei para minha mulher: "repare só os fios dos postes. Note como atravessam por cima de nossas cabeças, veja como são caóticas as conexões quando saem dos transformadores e distribuem-se para os prédios comerciais. Note a feiúra e desorganização em toda parte..."

Fiquei em silêncio dirigindo o carro e, um minuto depois, veio o comentário:

"Noooossa, eu nunca havia reparado nisso! Quero dizer, eu sabia que eles estavam ali e que eram feios, mas nunca havia refletido como poderia ser a ausência deles, coisa que fiz agora".

Quem viaja a países do chamado primeiro mundo nota de cara a ausência destes postes e fios elétricos. Percebe que o ambiente é mais organizado e limpo, o calçamento das ruas é uniforme, os meio-fios padronizados, as calcadas lisas. E então imagina que tudo seja assim apenas "porque se está no primeiro mundo". 

A falta de ruído visual dá essa percepção de limpeza, e os indivíduos mais desatentos notam isso de maneira subconsciente, sem saber exatamente o que há de diferente. 

Vivi fora do Brasil por quase 4 anos. Na volta, logo na primeira semana, tive um baque. Havia perdido até o "timing" para atravessar a rua e temi ser atropelado. Lembro que o primeiro ônibus que peguei era novinho, e, apesar disso, era também incrivelmente feio por dentro. Havia excesso de elementos: tubos de alumínio fazendo curvas quase barrocas, estampas ridículas nos estofados, conexões e penduricalhos desnecessários... Os motoristas permaneciam os mesmos incivilizados, acelerando em direção ao sinal fechado, logo ali 100 metros à frente.

Aqui no Brasil crescemos e vamos nos acostumando à feiúra que nos cerca. Ela está presente no traçado mal feito das cidades, nas calçadas esburacadas, nos aparelhos de ginástica das praças (os de niterói parecem ter sido importados do Sudão), nos letreiros de lojas, nos banners publicitários, na arquitetura medíocre (que infelizmente vai ficar de pé por décadas), nas tosquíssimas soluções urbanas (pontos de ônibus, brinquedos e bancos de praças). A feiúra está até nas coisas que acabaram de ficar prontas!

Não estou falando das exceções, mas da maioria das coisas.

Um amigo certa vez disse uma frase que, para mim, resume este país:

"O Brasil é o país do provisório definitivo."

Existe aqui uma vocação natural para o tosco e a feiúra. Acho que é assim porque crescemos acostumados à isso.

E nesse contexto, o designer brasileiro é, sobretudo, um forte.

20 comentários:

Gabriel Baquit disse...

certa vez um amigo me fez a mesma observação sobre os postes e fios de tensão e minha reação foi a mesma.

adorei o texto.

Henrique Placido disse...

Primeiro mundo é uma pintura de Mondrian. Já o Brasil é uma tela de pollock... rs

Alarcão disse...

Henrique, sou fã dos dois artistas que você citou.

Há momentos em que a comparação com arte não funciona. Principalmente se estamos falando de urbanismo e design com foco em funcionalidade.

Diggs disse...

Fico feliz em ver que não sou só eu que tenho essa percepção. Design no Brasil ainda é visto como um "luxo desnecessário". As pessoas ficam bravas quando eu falo o quanto nosso país é feio...
Excelente texto alarcão.

tio .faso disse...

Eu como bom paulistano que vive na cidade da guerra à publicidade externa, com o seu Cidade Limpa, volta e meia eu tenho um troço quando abandono a capital.

Realmente é complicado ver a beleza em meio ao caos urbano, mas mesmo dentro dele eu ainda consigo achar um pouco de romantismo.

Nunca viajei para fora do país, logo não tenho repertório suficiente para saber o quão menos é mais no quesito urbano, mas se alguém se aventurar a andar dos centro para a periferia, vai notar que o feio e bonito são vários gradientes que se cruzam ao mesmo tempo.

Sem mais, ótimo texto mestre!,

abraços,

tio .faso

Bruno disse...

Excelente percepção.
Pensamento parecido me ocorreu caminhando justamente pelas ruas de Amsterdam ("justamente" pelo depoimento do holandês no post) e olhando para os cartazes, fachadas de lojas, camisa dos times...e percebendo como o bom design é o default dos caras.

E é isso aí mesmo, estas pequenas grandes coisas dão a pista do que aquela sociedade preza, valoriza e escolhe.

Alexandre Greghi disse...

Saindo ligeiramente pela tangente, acontece o mesmo com arte contemporânea. A pessoa acha q não entende de arte, o que é bonito e o que é feio. Pelo fato de encontrar "algo" dentro de um museu ou bienal, automaticamente aquilo vira arte, claro que sempre apoiado pelo texto do curador.

Fernanda disse...

Boa reflexão. Realmente, o bom design não nos cerca, aqui no Brasil. Vivemos à procura dele...
Quanto ao costume... Acaba que a gente se acostuma a tudo. Até a ver gente dormindo na rua ou pedindo esmola. Infelizmente.

Celso Mathias disse...

Boa noite Alarcão.tudo bem? Espero!
Permita-me concordar em parte.
O que é feio ou bonito, nem sempre tem a ver com organizado ou desorganizado.
Lembremos Francis Bacon que criava em meio a um caos que para muitos, quando mostrei fotos, tomaram um susto, um repúdio e para outros, um ambiente "artístico" e inspirador.
O exemplo citado dos fios, bem, como são as coisas não é?...Tirando a parte cáustica social...Que não vem ao caso especificamente, acho extremamente artístico um poste como o citado...Pode-se transcorrer até uma leitura intelectual sobre o fato, afinal não é próximo disso que algumas instalações em espaços ultra modernos são exibidas?
Bom, acredito que o olhar é pessoal e intransferível. Se olharmos uma rua torta, cheia buracos e lamacenta acredito que transbodará inspiração artística muito mais do que uma rua "dita" organizada, limpa e tudo super equilibrado.
Bom, é o meu ponto de vista. Prefiro as vielas do centro do RJ às ruas milimetricamente planejadas de Brasília. Mas volto a falar, o olhar é uma coisa pessoal. Acho que nos acostumamos ao pretenso "caos" urbano porque no fundo somos assim sabe? Somos uns emaranhados de fios em busca de luz. Viver em lugar onde as ruas ou as cidades são chamadas "organizadas"e limpas é mais ou menos como decorar a casa igual a capas das revistas de decoração, FALTA VIDA, FALTA um "Q" DE DESORGANIZAÇÃO NATURAL...É isso, PELO MENOS PRA MIM, que causa a tal reação de que preciso pra criar. Feio? bonito? Uma questão apenas de como perceber.

Um forte abraço e parabéns sempre por seus textos e ilustrações.

Celso Mathias disse...

Oi Alarcão! Tudo bem? Espero que sim!
Permita-me ter uma pequena discordância do seu ponto de vista.
Veja: Acredito que o olhar sobre o dito feio ou bonito é uma questão puramente particular. Não vamos misturar a questão social com a artística em termo visual. São coisas distintas.
Para mim é muito mais inspiradora uma viela torta, com postes tortos do que uma rua, por exemplo, em Dusseldorf na Alemanha com seus ângulos retos e retilineamente limpos.
No caso do poste cheio de fios, interessante, pois vejo algo de belo neles. Juro! Eu e o Chico Buarque de Holanda(kk).
Lembremos que do estúdio de Francis Bacon saíram obras fantásticas e era um caos. Note: Alguns se horrorizam e outros acham muito inspirador. Essa diversidade de olha que me encanta.
São mais ou menos como as casas. Ninguém consegue viver em uma casa com decoração de capa de revista, tudo milimetricamente colocado e super clean. È lindo, mas só pra foto, sempre tem que haver uma “bagunça”, uma desorganização, para ter vida. As vezes uma cafonice também , porque não? Aquele cestinho de vime da vovó que todo mundo acha horrível mas que no cantinho certo fica lindo pra gente. Veja que coisa, um poste emaranhado para muitos é horrível, mas ao nos depararmos com uma instalação onde o mesmo poste estaria exposto em um espaço cultural ultra moderno já não o é. O olho do artista necessita do “caos” para criar. A desorganização ou mesmo o dito, feio, está presente em tudo em nossas vidas. Uma criança nasce horrorosa, mas há quem a ache linda enrugada daquele jeito. Lembrei-0me dos pés sujos dos santos nas obras do genial Caravagio. Algo repudiado pela igreja na época, mas alvo de adoração quando colocados sobre um altar. Uma calçada de concreto todo rachado já inspirou e ainda inspira artistas no mundo todo, mas há quem ache aquilo uma poluição visual e uma coisa feia de se conviver... O me admirou no seu post e que também me fez comentar, é que justamente a sua arte não traduz o texto de que você escreve...Pois vejo na sua arte um CAOS hiper artístico(soe isso como elogio), uma desorganização de beleza incomensurável. Algo extremamente barroco com linhas tortuosas e por vezes “sujas” ( não pejorativamente) da sua beleza artista de grande maturidade e pode criador que tens.
O seu texto se encaixaria se fosse escrito por um Mondrian por exemplo, mas nunca por você.
Acho que todos nós sem exceção somos realmente postes emaranhados de fios a procura da luz. Vivo em Copacabana e sempre tenho a mesma sensação de muitos ali, de que os turistas que ali chegam vêm de seus países ultra organizado, atrás justamente desse caos, dessa poluição visual, simplesmente porque o limpo, o retilíneo, o perfeito é muito chato. Não é a toa que o nosso cérebro é feito de vielas tortuosas. Fechando com a frase do artista Boris Valejo; “ Uma prancheta muito limpa e organizada é sinal de pouca imaginação”.
Portanto vamos olhar para postes de fios emaranhados com uma visão puramente pessoal e intransferível, a visão do nosso universo particular.

´Não quero ser radical na minha colocação. Desagrada-me sim e muito, ver a cidade sendo tomada pelas favelas e também nas ruas , pelo menos de Copa, a miséria total há muito se instalou e o povo é sem educação, mas a minha colocação foi no lado artístico ok? E não social, pois aí entraríamos por caminhos que estou enojado para comentar, o da política social.

Boa noite e parabéns pelo texto e arte.
Que tal um chope pra continuarmnos o assunto??

Alarcão disse...

Aos 20 anos fiz uma viagem de mochila nas costas por alguns países europeus. Lembro-me bem de uma cidade medieval chamada San Geminiano, que conheci na Itália. Suas ruas, ladeiras e calcadas de pedra, eram tosca e irregularmente lavradas. Mas não havia qualquer lixo no chão, nenhum letreiro cafona nas lojas, nenhuma "praca" nem faixa dependurada em postes, nenhum cheiro de urina nas vielas, nenhum chevette apodrecendo em estacionamento algum, nenhum vira-latas deitado na calçada em frente ao açougue.
Desde o século 17 é proibido urinar em público em cidades da Europa. No Brasil, 3 séculos depois, o mijo é tanto que corrói até os vegalhões das colunas de viadutos (vi essa notícia no jornal ontem). No carnaval correm cascatas de mijo pelas ladeiras da cidade de Olinda, patrimônio cultural da humanidade.
Relativizar as coisas e achar que o que eu quero aqui é defender a bandeira da ordem e do progresso, da régua e do compasso, pura e simplesmente, me parece uma interpretação equivocada da crônica. Ou então um exercício poeetico de relativizar tudo, buscar os cinzas para invalidar os argumentos.
Obviamente, quando quero escolher temas para arte, eu também acho a feiúra mais interessante do que a beleza. É mais interessante fazer uma aquarela de uma velha do que o retrato da Charlize Theron.
A intenção do texto aqui é falar de bem viver, crescer cercado de detalhes que nos dêem a sensação de civilidade, senso de design, respeito e inteligência dos governantes, conviver com menos ruído visual, sujeira e feiúra.
Não tentem me convencer que um poste de favela é bonito. Posso até aceitar que é "interessante e curioso", que parece arte (como aquele sofá dos Campana), principalmente porque a arte há muito deixou de ser a busca pelo belo.

Celso Mathias disse...

Pois é Alarcão, ainda bem que há a pluralidade de leituras .

VIVA A DEMOCRACIA DO OLHAR!!! KKKKKK

FORTE ABRAÇO

Rodrigo Pinheiro disse...

Depois de ter lido esse texto ele não sai da minha cabeça. Parece que você conseguiu transformar em tangivel aquilo que eu queria tanto entender e só sentia.
Ando pelo Rio (Baixada e Zona Sul) e vejo tanta coisa feia e me pergunto o porquê disso.
Obrigado por dispertar essa forma de ver em mim. Um cara que nunca saiu do Brasil, mas que ama ver fotos e documentários de outros países e lugares.

ju disse...

eh preciso ser forte p passar em frente a loja de artesanias ou qqr coisa q o valha da esquina, fizeram agora vitrine toda em lilas (caixarotes e seila mais q) contrastando com o logo gigante e desgastado em cima em "roxio" e a parede "roxia".
mais feio q loja de depto, descomunal para a pqna avenida, do outro lado da rua.

Alexis Baldomá disse...

Excelente texto.

Stefan disse...

Interessante também ver o que fizeram aqui em porto alegre, limparam um túnel que estava cheio de graxa e escreveram "por uma Porto Alegre Limpa" com a própria limpeza da parede, ainda quase foram presos por pixação.

http://pobrepampa.blogspot.com/2010/06/porto-alegre-mais-limpa.html

Sophia Pinheiro disse...

Vale a pena citar o grande escritor Umberto Eco e seus célebres livros: A história da Feiúra e a História da Beleza...

"A feiúra não conhece limites. (...)
Descobrimos como é divertido buscar a feiúra, porque a feiúra é mais interessante que a beleza. A beleza frequentemente é entediante. Todo o mundo sabe o que é a beleza."

Link da matéria: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u336030.shtml

Abraços, mestre!

Thais disse...

Dá um grande conforto e alívio quando descobrimos que não somos os únicos a ter uma certa visão.. Sempre tive essa mesma impressão de nossas cidades e cotidiano. Até criei uma máxima aqui em casa, falo sempre que a "tosquidão é uma doença crônica no Brasil". É impressionante como está impregnada em qq coisa e lugar. Eu mesma já me peguei relutando a ir a um restaurante muito famoso de frutos do mar, porque o que seria o logo era primário e medonho e a arquitetura ( escolha dos revestimentos, cores, mobiliário ) e decoração do ambiente me dá medo de tão horrenda. E sempre me preocupa muito a grande massa que acha isso tudo super "normal" e nem ao menos percebe! Como pode?? Será que essa "fuga" para o outro lado da caverna, é um "privilégio" de poucos? Porque temos que conviver com tanta feiúra e achar que o belo e a organização é que são exceções? Olha, concordo plenamente: nós designers brasileiros somos fortes - mesmo! Excelente texto, Alarcão.

ds disse...

Grande reflexão Alarca. Já fiz um backpacking há uns tempos e sempre meditei sobre esta diferença no nosso entorno... isso que vc cita sorbre calçadas, meio-fios, estradas... Só nunca tinha adentrado nessa questão do efeito que esta realidade nos impõe (a nós e a eles do primeiro mundo). Isso dá panos pra manga. Meditarei agora sobre um novo ponto de vista. Valeu, sou teu fã, velhinho!

Renata disse...

Porra, Alarcão.
Definiu, definiu tudo.

Obrigada cara, sempre pensei coisas do tipo mas nunca teria expressado de maneira mais clara.

Parabéns pelo texto e OBRIGADA :)

Beijos!