27.10.07
Não chores por mim Argentina
Acabo de chegar de Buenos Aires, uma bela e civilizada cidade onde todos os velhos têm cara de escritor, onde as garrafas de cerveja são de litro, onde os alfajores nos causam festa no palato e os churrascos não são lá grande coisa; onde deve-se tocar a campainha para entrar nos sebos, onde não se vêem pedintes ou ambulantes a vender balas nos sinais de trânsito, e onde o gene da calvície parece ainda não ter se instalado.
Para minha completa estupefação, notei que inexistem por lá pessoas negras. Sobre essa peculiaridade - contou-me um guia portenho - a explicação histórica está no desgracento século XVII, quando muitos deles foram enviados à guerra, e os poucos que ficaram - mulheres e crianças- foram dizimados por um surto de febre amarela e por isso não deixaram semente.
(um amigo do Rio Grande do Sul me conta uma história um tanto diferente...Segundo ele, o que houve mesmo foi o extermínio deliberado)
Como turista comprei algumas cositas, dentre elas um legitimo exemplar do chamado "Filete Porteño", tradicional artesania tipográfica local. Até os ônibus que circulam pela capital desfilam um ou outro detalhe em filete.
O velho mito de que a capital argentina é um dos locais no mundo onde se concentra o maior número de livrarias por habitante é uma mentira deslavada. Admito que fui para lá com meu coraçãozinho bibliófilo repleto de esperanças e acabei frustrado.
Em uma visita a um sebo no bairro da Recoleta, cheguei a ter em mãos dois exemplares dos tratados de ensino de desenho de Andrew Loomis, ambos a preços exorbitantes. Estes livros vão encalhar com certeza, roguei praga ao irredutível proprietário. Saibam todos que os livros do Loomis já se encontram disponíveis na internet em PDF para serem baixados gratuitamente. Dica do generoso amigo "Hiro Kawahara". (Não, o Hiro não é esse cara aí embaixo no desenho de Carlos Alonso)
O ponto alto das minhas garimpagens bibliomaníacas foi um livro ilustrado pelo fenomenal dibujante argentino Carlos Alonso. "La Guerra Al Malon" narra o conflito entre o exército argentino e os índios que estrangulavam a vila de Buenos Aires há uns duzentos e tantos anos atrás. Creio que foi este mesmo livro que caiu nas mãos do ilustrador Miran, que dedicou a Carlos Alonso várias páginas de sua revista Grafica. As imagens são estas que você vê.
"Enquanto os brasileiros já nascem sabendo jogar bola, os argentinos já nascem sabendo desenhar", disse certa vez um importante artista brasileiro (cujo nome não cito por não ter certeza se é ele mesmo o autor da frase). Pergunto-me: será que pouco mais de meia dúzia de artistas lapidares (Nine, Munõz, Breccia, Carlos Alonso, o uruguaio Sábat, etc) justificaria esta fama?
Dentre os pontos altos desta viagem vale citar uma visita ao bairro de Palermo Soho, onde fica uma loja chamada "Papelera Palermo", que vende uns bons papéis artesanais, sketchbooks e livros de artista em edições limitadas. Também se encontram naquela região muitas lojas com trabalhos autorais bastante criativos (moda, objetos de design etc). Encontrei também em Palermo próximo a uma praça chamada Julio Cortázar, circundada pela rua Jorge Luis Borges, boas livrarias, cds e bares bons para se entornar uma Quilmes de litro bem gelada acompanhada de umas empanadas.
O Cemitério da Recoleta é um lugar interessante para ser visitado, e algo ali me fez crer ainda mais fortemente que o ser humano é um animal muito esquisito.
O museu Malba tem um acervo irregular, com muita merda como aquela coisa feia chamada Abaporu e também uns quadros engana-trouxas feitos pelo Hélio Oiticica e a Lígia Clark. Claro, existem também algumas belas obras cubistas do Diego Rivera, algumas visões da Frida Kahlo, e uns outros artistas cujos nomes foram ofuscados pelas coisas absolutamente medíocres e indigentes ao redor (será que usa-se a arte contemporânea para lavar dinheiro?).
O Malba é, até certo ponto, como o MAC de Niterói (cidade onde moro): vale pela visita ao prédio. Arrisco-me a dizer que a arquitetura arrojada tem sido a tábua de salvação dos museus de arte contemporânea pelo mundo afora.
Infelizmente minha curta visita não incluiu o final de semana, quando acontece a feira de antiguidades de San Telmo, que dizem ser muito boa.
De volta ao Brasil, penei pelas intermináveis conexões aéreas, entrei em aviões com o mesmo pensamento de sempre ( "se esta merda cair eu não terei a menor chance"), virei noite acordado no aeroporto de Porto Alegre e agora, demonstro sinais de completa insanidade ao gastar meu precioso tempo de dormir escrevendo reminiscências e irrelevâncias às duas e meia da manhã.
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5 comentários:
Bacana o raio x que tu faz de BSAS. Apesar das quebras de mito (das livrarias, por ex.) aguçou minha vontade de conhecer a Argentina.
Concordo (com ressalvas) com a máxima que envolve futebol e ilustradores... nós tb temos nossos destaques no campo das linhas bem traçadas. É bem verdade que Muñoz, Breccia (s),Nine são verdadeiros Pelés das Artes Gráficas mas não devemos nos esquecer que temos grandes Breccias pro aqui tb...
Corajoso tu, héin... esculachando alguns dos grandes nomes das arte plásticas nacionais... não tenho parãmetros pra concordar contigo ou não. Mas é louvável tua disposição!
Grande abraço, Alarca.
Fala Damião, beleza?
Agora o nome "Nine" também pode ser escrito com um (s) depois (como você fez com o Breccia). Vi uns trabalhos de um Lucas Nine numa revista em quadrinhos chamada Fierro e depois encontrei-o também num catálogo mudérnésimo sobre ilustradores argentinos contemporâneos.
Aliás, ao folhear este catálogo cheguei à triste conclusão de que continuamos atrás de nossos vizinhos no assunto desenho. Em geral a grande maioria de nós ilustradores brasileiros ainda é muito conservadora (graficamente falando, claro). Eu incluso.
Esqueci de dizer que tive a alegria de encontrar na minha palestra na UFRGS o Fraga, ilustrador fera lá de Porto Alegre. Gente fina, trouxe um sketchbook cheio de belezuras.
Finalmente alguém teve a coragem de atacar estas vacas sagradas da arte brasileira.
Já faz muito tempo que o rei desfila nu e todo mundo aplaude!
Agora até cachorros esquálidos, doentes e famintos se qualificam como obra de arte.
Depois do impressionismo criou-se um grande cagaço generalizado em rechaçar o novo (salvam-se os escritos de Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant'anna). Galerias de arte são lavanderias de dinheiro, oh yes.
Salve, Mestre!
Na tua descrição sobre Buenos Aires faltou uma coisa que, a mim, saltou-me aos olhos, quando lá estive: notei que a "grandecíssima maioria" das pessoas não usa óculos de grau, naquela cidade. Nem mesmo os mais idosos. É de impressionar! Aliás, para encontrar ali uma loja de óculos de grau você tem que procurar e enxergar muito bem, de tão difícil que é... Você não notou isso? Ou será que las cosas cambiaran?
Bjs e "bienvenido de vuelta"!!! :-)
Helena
Que fique claro: eu até curto os parangolés do Oiticica e respeito o fato dele ter sido um dos precursores dessa onda de instalação com os seus "penetráveis" e que tais. Mas as pinturinhas que eu vi lá no Malba não estavam muito longe dos trabalhinhos de alunos de primeiro período de faculdade de artes. Aproveito para dizer que topo lavar dinheiro dos outros com as tosqueiras que tenho guardadas dessa época.
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