Escrevi esta mensagem abaixo a um estudante que, antes de abandonar meus cursos, enviou-me um e-mail onde, dentre outras coisas, disse:
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...porque eu acho que seus conceitos mudaram um pouco e eu me identifico mais com os antigos."
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Caro
Houve um tempo em que o ensino de arte era algo escrito praticamente em tábuas de pedra, como se fossem leis perenes. Professores partiam de profundas convicções e as impunham a seus alunos, sem respeito às múltiplas diferenças de personalidade e interesses expressivos de cada indivíduo.
Um cara como Matisse, por exemplo, teve a sorte de estudar com um professor que conseguia enxergar em seus alunos o potencial latente, e assim trabalhava para magnificar o que cada um deles tinha de mais especial e único. Este era um professor que não impunha verdades absolutas, nem a sua própria forma de ver ou de se expressar.
Lá longe no passado, o sábio Sócrates foi o tipo de professor que chegava em seus colóquios com o objetivo primordial de apenas dialogar. A própria estrutura da palavra dialogar explica bem seu significado: as verdades e conclusões mais sólidas nasciam do embate das idéias do mestre com seus discípulos. Tese, antítese e síntese.
Esta forma de educar e, porque não dizer de aprender, é talvez a que mais me entusiasma e inspira hoje. Os tempos são outros, e, como sabemos bem, tudo evolui muito rápido.
Entendo que o ensino e a aprendizagem de qualquer forma de arte deve ser orgânico e não um conjunto de regras pré-estabelecidas para atender às necessidades de todos.
Vejo um surfista que desliza sobre aquela superfície irregular e inconstante e, mesmo assim, tem que tomar decisões a cada milisegundo para traçar sua trajetória ao longo de uma onda. Ouço um solista de Jazz que leva suas notas para passear sobre uma base bem marcada, e percebo também que ele muitas vezes caminha sem saber exatamente onde vai chegar. É justamente assim que a criação artística brota do seu núcleo mais profundo, a pura fonte da intuição. Da mesma forma, compreendo assim o aprendizado de arte: traçar a jornada como se esta fosse mais importante do que o ponto de chegada.
Há apenas uma semana atrás aprendi uma nova com um amigo taoísta e profundo conhecedor do I-Ching:
" Um professor não deve dispender um grande esforço para educar seu discípulo. A prerrogativa do esforço, da disciplina e do interesse, deve partir sempre do aluno."
Por compreender a profundidade de palavras tão simples, vi-me imediatamente arrebatado por este conceito. E por isso já adotei esta mudança.
Vamos falar a verdade. Na maioria das vezes o professor está ali apenas para criar contextos e oportunidades de aprendizagem, ser a ponte para que outros atravessem, mesmo que aqueles venham a conhecer lugares por onde o próprio mestre jamais pisou ou pisará. O mestre não pode caminhar o caminho por você.
A partir de uma certa idade, especialmente aquela ali por volta dos 8 anos, começamos a usar mais a borracha do que o lápis quando nos lançamos aos materiais de arte. O processo se dá de forma lenta, porém inexorável, e assim construímos muralhas ao redor daquele centro criativo que pulsa no recôndito mais profundo da nossa alma. Chega um momento em que pouca coisa sai dali sem passar antes pelo filtro do racional. O sentimento que cresce e se apodera do indivíduo se parece com um medo travestido de vaidade, fruto vão de um desejo de ganhar elogios, de ser adulado, uma necessidade boba de recompensa emocional, uma vontade de fazer "certo".
Refletindo sobre o trabalho que venho desenvolvendo nos meus cursos e oficinas, percebo que, primeiro de tudo, busco mostrar à pessoa que ela pode, deve e tem o direito de ousar fazer qualquer coisa que dê na telha. Isso porque somente o fazer prático pode ajudar-nos a perder aquele infeliz medo de fazer "feio", "errado", ou fora daqueles cânones bobos de "buniteza" que sei-lá-quem alicerçou. É preciso sim errar e muito, e aproveitemos que ainda não está escrito em lugar nenhum a temida lista de punições para quem "errar" quando atrever-se a expressar-se criativamente.
Cada aluno que me procura tem um potencial diferente e eu só procuro abanar este fogo pessoal, para torná-lo mais aparente e visível (visível para o próprio dono do fogo, importante que isso fique claro). Ocorre às vezes que a pessoa possui apenas uns "foguinhos" dispersos, umas brasinhas espalhadas, uns fogos de palha...
Jovens com grandes qualidades potenciais em estado ainda imaturo são como uma pedra bruta aguardando apenas o cinzel do mestre. Que nada, não é sempre assim que a coisa funciona. Embora a sorte de encontrar um mestre na vida (eu topei com 3 até agora) seja tão rara quanto a de encontrar o seu amor verdadeiro, o esforço maior para lapidar-se em diamante sempre deverá ser do maior interessado: o aprendiz.
Se eu pudesse voltar aos meus vinte anos, talvez só desejasse acrescentar umas pequenas coisas nos primeiros anos da minha vida de artista: o hábito de manter um diário gráfico sempre ao alcance da mão, a prática compulsiva do desenho e mais alguns quilômetros de leitura. Agora, quase um burro de meia idade, aconselho meus alunos a fazerem isso e me realizo ao ver que eles não estão incorrendo nos mesmos erros que eu cometi durante aqueles importantes anos da minha formação.
Assim, em resposta à frase que parece me acusar de uma heresia ("
seus conceitos mudaram um pouco"), digo apenas que a mudança é parte da própria vida, é parte dessa coisa entrópica que a tudo gasta no universo, seja o aço ou as montanhas. O mundo das idéias, mesmo sendo não-físico, não está imune a esta força.
Algumas verdades é que permanecem as mesmas sempre. Um dia vamos morrer, e quando esta hora chegar, talvez o único consolo que nos reste seja o pensamento de que vivemos a vida que realmente desejamos viver. Nesta hora, podemos nos lamentar por não termos ousado mais, corrido mais riscos.
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Não siga a estrada, apenas; ao contrário, vá por onde não haja estrada e deixe uma trilha.", disse Ralph Waldo Emerson.
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PS: Este texto nasceu de uma profunda alegria, causada pela visão da produção das muitas pessoas criativas que passaram pelos meus cursos em diversas cidades do Brasil(clique no título para conferir).